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QUEM SOU EU ?

  • João Luiz Muzinatti
  • 12 de abr. de 2021
  • 5 min de leitura

Num domingo destes, procurando por canções antigas no YouTube, deparei-me com uma que me encantara lá pelos meus 18 ou 19 anos. Interpretada por um grupo britânico de nome Supertramp – que podemos até entender grosseiramente como “super vagabundo” -, a canção em questão foi batizada como The logical song. Foi ótimo poder escutá-la novamente, bem como apreciar um show ao vivo da banda – de acordo com a nota do vídeo, realizado em 1979. E, como não poderia deixar de ser, fiz uma viagem – ou foram várias viagens – de ida e volta, até aqueles tempos.


Naquela época, não me causara nenhuma reflexão grandiosa o título da música. Automaticamente, eu o entendia como “canção lógica”, e isso não significava grande coisa para mim. Curtia, mesmo, a melodia, as vozes e, principalmente, os solos de saxofone – magistrais. Porém, é certo, havia alguns versos que me faziam ficar mais pensativo do que acontecia com o grandioso rol de canções estrangeiras (naquela época) feitas apenas para se dançar. Sim! Eu me sentia tocado em algumas partes da música.


Por exemplo, havia uma sequência de versos que dizia: “they sent me away to teach me how to be sensible logical, oh responsible, practical; and then they showed me a world where I could be so dependable, oh clinical, oh intellectual, cynical”[i]. E, lembro-me muito bem - estes dizeres me causavam certo incômodo. Afinal, teria de aprender a ser sensato e responsável? Que coisa estranha: achava que já era isso tudo! E me diziam que entraria, em breve, num mundo onde me seriam cobrados atributos como confiabilidade e intelectualidade. A sensação que me dava era a de que, até então, eu brincara de viver. Porém, lá no fundo, sentia que já vivera muita coisa importante, e que não foram somente brincadeiras ou pura contemplação do mundo. A prova disso, pensava, era que já cursava uma faculdade e vencera etapas importantes, nas quais responsabilidade, intelecto e confiabilidade haviam sido fundamentais. O que viria, então, de novo?


O final da canção não me fazia grande sentido. Talvez estivesse até me desencorajando, sei lá. Frases como “now, watch what you say or they'll be calling you a radical[ii]”. Deveria ser alguém sincero, confiável etc, mas tomando sempre cuidado com o que falaria. Algo como: “faça as coisas certas, mas não as professe de maneiras que possam te causar algum tipo de problema”. Aquilo me soava, na época, como uma advertência: deveria tomar cuidado, pois ser adulto, profissional e pai exigiriam de mim cautela e um certo temor de fundo. A verdade é que não ligava para aquela possível mensagem, pois gostava mesmo era da vida arrojada, com um certo risco ... Algo como um desafio. E, na minha cabeça, os desafios deveriam ser enfrentados com coragem, não com medos ou cuidados excessivos. Minha reação, então, era nem ligar para isso, e curtir a melodia e o sax. Nem me preocupava com o verso talvez mais importante da canção: “but, please, tell me who I am, who I am, who I am, who I am[iii]”. Aquilo não me parecia algo importante. Claro que eu sabia quem eu era!


Muita coisa aconteceu na minha vida, de lá pra cá. Profissões que foram se alternando – engenheiro, professor, escritor – e uma vida pessoal também nem um pouco ortodoxa. Afinal, vários casamentos, por exemplo, não são exatamente o que os manuais das pessoas ditas “bem comportadas” aconselham. Fui experimentando, pouco a pouco, o significado de termos como “sensatez”, “responsabilidade”, “cinismo”, “fanatismo” e “radicalismo”, entre tantos outros. Ia construindo uma vida a partir do possível e sempre, quase que automaticamente, cuidando para que meus valores batessem com os da velha canção – a qual raramente escutei nestes quarenta anos que se passaram. E fui me tornando alguém aceitável dentro de uma sociedade que também foi se estruturando, se desdizendo e se transformando ao longo deste tempo todo. E a canção, ouvida atentamente hoje, após esses anos, me trouxe uma observação, se não nova, pelo menos marcante.


Quem sou eu, afinal? Ou, dizendo de uma maneira mais correta a meu ver, em quem venho me transformando nesses anos todos? Sim, pois eu e o mundo temos mudado desde a primeira vez que ouvi a canção. E as transformações que ocorreram foram muito radicais, pois a ouvi pela primeira vez no final dos anos 1970, e já estamos em 2021. E o mais complicado de tudo: neste momento da vida sou professor, e sigo a escrever. Dois ofícios que pressupõem ouvintes e leitores; dois caminhos que sugerem haver gente que aprende comigo. Comigo? Eu, que sou a “metamorfose ambulante” do Raul, o “homem que não se banha nunca duas vezes no mesmo rio”, do Heráclito? Eu que não sei do presente, pois está se transformando no instante em que meus dedos deslizam por este teclado? Do futuro, o que poderei dizer? (No início de 2019, jamais se poderia sonhar que, no ano seguinte, estaríamos reféns de um vírus – este, biológico; além de outros ideológicos, políticos, insanos e criminosos?) O que será de nós? Como ensinar sobre o que teremos de fazer a partir do que viermos a ser? O que seremos? Em que nos transformaremos? A canção bateu forte a ponto de me fazer pensar demais: meus leitores e meus alunos são pessoas diferentes, por exemplo, do que eram antes da pandemia. E temos pensado e refletido, durante este período, cada qual em uma prisão diferente. E quando nos libertarmos? Ou: quando houver a liberdade, como pensarão e agirão os sobreviventes?


O “quem sou eu da canção” tornou-se anacrônico? Ou será que se revela, renasce e se ressignifica a cada dia? Então, o que devo escrever, o que devo dizer aos meus alunos? Falar do passado? Por quê? O passado não nos soprou esta realidade, por mais atentos que estivéssemos? Presente? De quem: meu, de vocês, deles? Que será da minha profissão; o que estará acontecendo com a cabeça daqueles que, de repente, cuidam de pacientes com Covid (aos montes) nos hospitais; como anda pensando o poeta, que não encontra lágrimas novas nem pode se valer das antigas para compor; o que sentem as pessoas que têm de trabalhar (se arriscar) e encarar o vírus diariamente; quais os valores e os interesses de políticos e mandatários que cuidam ou abandonam a crise? O que dizer? A realidade estudada racionalmente poderá me ajudar? Ou, enfim, terei de enveredar por caminhos mais heterodoxos?


Talvez deva ouvir novamente essa canção. Não tanto pela letra, pois acho que já a conheço de cor. Talvez a realidade possa ter algum pote de ouro escondido onde ninguém imagina. Sim ... Por que não? Quem sabe o saxofone possa conter alguma nota da qual não me tenha dado conta ainda. Isso! Algo como um evento insólito e vital na natureza; algo imperceptível imediatamente, mas que me faça, pelo menos, encontrar um vínculo ainda desconhecido com o (sempre novo) mundo. Algo que se revele forte, e me convença a não querer parar. Não agora!




João Luiz Muzinatti - abril de 2021


1- Aqui, podemos traduzir como: “mandaram-me embora a fim de me ensinar a ser sensato, lógico, responsável, prático; e então me mostraram um mundo onde eu poderia ser confiável, clínico, intelectual e cínico o suficiente”.


2- [1] E estes versos podem querer dizer: “agora, veja bem o que você diz ou eles vão te chamar de radical”.


3- [1] “Por favor, me diga quem sou eu, quem sou eu, quem sou eu”.







1- [i] Aqui, podemos traduzir como: “mandaram-me embora a fim de me ensinar a ser sensato, lógico, responsável, prático; e então me mostraram um mundo onde eu poderia ser confiável, clínico, intelectual e cínico o suficiente”. 2- [ii] E estes versos podem querer dizer: “agora, veja bem o que você diz ou eles vão te chamar de radical”. 3- [iii] “Por favor, me diga quem sou eu, quem sou eu, quem sou eu”.






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